Por Maicon Cláudio da Silva

Nos tempos atuais, em que a política tem a aparência tosca de uma guerra entre esquerda e direita, uma discussão sobre a importância da teoria para a militância política, mais do que necessária, é urgente.

Historicamente, o uso dos termos direita e esquerda para designação de inclinação política tem origem na Revolução Francesa, de 1789, quando após a vitória, os liberais girondinos sentavam-se à direita do Parlamento, enquanto os jacobinos, mais radicais, estavam à esquerda. A definição de esquerda, portanto, não possuía nenhuma relação com o movimento comunista, até então dominado apenas pelos socialistas utópicos. Aliás, os Jacobinos defendiam tão somente propostas ainda dentro dos limites da economia capitalista, como a República e o Estado laico.

Acontece que atualmente, apesar de todo o desenvolvimento histórico da luta dos trabalhadores, a confusão ainda persiste, e a definição de esquerda aparece frequentemente muito nublada. Nos movimentos sociais, partidos e outras organizações populares, muitos são os que se declaram de esquerda, na maioria das vezes identificando isto como uma postura moral, pró-trabalhador, sem nenhum tipo de critério objetivo.

Despreza-se assim, tudo o que o desenvolvimento da teoria de Marx e Engels representou para a luta da emancipação humana. Os movimentos dos trabalhadores que precederam a obra dos autores alemães eram dominados pela ingenuidade do socialismo utópico e estavam eivados de julgamentos morais. Ao analisarem o sistema capitalista, Marx e Engels demonstram pela primeira vez que o socialismo não só era um desejo, mas uma possibilidade e necessidade histórica, isto porque no sistema capitalista, a produção é cada vez mais socializada, ou seja, envolve mais e mais trabalhadores que são mais e mais dependentes do sistema para sua reprodução, enquanto o excedente é apropriado mais e mais por menos indivíduos. O capitalismo gera assim, os germes de sua própria superação, na medida em que a propriedade privada, que foi a base sobre a qual o sistema se levantou, passou a desempenhar um papel reacionário no seu próprio desenvolvimento. Foi, portanto, um divisor de águas.

Em obras como O Socialismo Jurídico, de Engels e Kautsky, e A Miséria da Filosofia, de Marx, fica claro que o objetivo científico da teoria dos trabalhadores é dizer como a sociedade é, e como suas contradições atuam para sua transformação, e não simplesmente como ela deveria ser, com base em questões morais.

Nos primórdios da Economia, com os doutores escolásticos, por exemplo, a crítica à usura já se apresentava, afinal, era uma necessidade material daquele tempo de crescimento da importância do dinheiro na sociedade. Contudo, a argumentação era quase que estritamente bíblica, com uso de citações como a de Levítico 25: 35-37:

"35 E, quando teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo.

36 Não tomarás dele juros, nem ganho; mas do teu Deus terás temor, para que teu irmão viva contigo.

37 Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse."

Da mesma maneira, Adam Smith, considerado por muitos o pai da Economia, foi na verdade o último dos filósofos-morais, e A Riqueza das Nações é repleta de julgamentos morais sobre a Economia. Inclusive, sua principal obra, considerada por ele e revisada antes de morrer, não foi A Riqueza das Nações, mas sim A Teoria dos Sentimentos Morais.

No desenvolvimento histórico da Ciência, o juízo moral teve um papel importante.  Aliás, como afirma Rosa Luxemburgo quanto às teorias socialistas utópicas, “apesar de toda a insuficiência delas, essas teorias, em seu tempo, eram verdadeiras teorias de luta de classe proletária, eram gigantescos sapatos de bebê, com que o proletariado aprendeu a caminhar na arena da história”. (Reforma ou Revolução, p. 117)

No entanto, a separação entre moral e Ciência foi um decisivo passo para a análise dos fenômenos reais. Claro que isto não significa dizer que supostamente a Ciência possa ser neutra após sua separação da moral. Longe disso. Todo ser que vive em sociedade é político na medida em que suas ações e pensamentos refletem as contradições da realidade material em que está imerso, especialmente de sua classe social. E, como disse meu amigo Thiago: “Marx tinha lado sim e não era um velhinho numa sala escura iluminada por velas com pilhas de livros empoeirados ao seu redor”. Aliás, é a concepção política de Marx que o permite avançar cientificamente.

“É precisa e unicamente porque Marx considerava em primeiro lugar como socialista, isto é, de um ponto de vista histórico, a economia capitalista, que pode decifrar os seus hieróglifos, e é porque fez do ponto de vista socialista o ponto de partida da análise científica da sociedade burguesa que pode, por sua vez, dar ao socialismo uma base científica.” (Reforma ou Revolução, p. 80)

De igual modo, é a concepção política da burguesia que assume o capitalismo como estágio final da civilização e não como apenas mais um período histórico do desenvolvimento humano, que faz sua ciência transformar-se em ideologia, justificadora do sistema e ocultadora da realidade. 

Do ponto de vista político, a principal importância da teoria, além de guiar as lutas dos trabalhadores na superação do capitalismo, é evitar qualquer tipo de oportunismo, como o reformismo, por exemplo. Em Reforma ou Revolução, Rosa Luxemburgo afirma que sua principal característica é a hostilidade à teoria:

“E é muito natural, pois nossa ‘teoria’, isto é, os princípios do socialismo científico, impõe à atividade prática limites muito precisos, tanto no que diz respeito às finalidades que se tem em mira como aos meios a empregar para atingi-las, como também ao próprio método de luta. Daí o esforço natural dos que buscam somente resultados práticos imediatos para libertar-se, isto é, separar nossa prática da ‘teoria’, tornar uma independente da outra.” (Reforma ou Revolução, p. 116)

Quando o oportunismo se junta à organização, surge o dilema que Alberto Guerreiro Ramos nos apresenta no essencial Mito e Verdade da Revolução Brasileira: a oposição entre o homem-organização e o homem-parentético. Para ele, o homem-organização é aquele que segue as determinações da organização (neste caso política, mas poderia ser de qualquer organização) sem uma postura crítica, enquanto que o homem-parentético é aquele que não segue simplesmente o movimento, sem refletir criticamente sobre a realidade e a organização.

Para apresentar suas definições de homem-organização e homem-parentético, Guerreiro faz uso da peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco. Na obra, misteriosamente surge um rinoceronte em meio aos homens. Aos poucos, as pessoas descobrem que são elas mesmas quem estão se transformando em rinocerontes. Ser rinoceronte, estranho no começo, passa a ser a regra, e os estranhos tornam-se os poucos homens que ainda resistem em não ser rinoceronte.

O oportunismo e o homem-organização andam lado a lado, na medida em que desprestigiam a importância política da teoria e da crítica à organização. Rosa Luxemburgo, por exemplo, após denunciar o reformismo dentro do Partido Socialdemocrata Alemão, terminou sua vida assassinada por membros do Partido aliados ao governo alemão.

Em tempos da maior crise política dos últimos treze anos, é mais do que urgente assumir uma postura crítica, de homem-parentético, e combater qualquer tipo de oportunismo, seja individual ou das organizações. A militância é essencial, afinal só a práxis transforma a realidade. Mas militância sem teoria, leva a equívocos graves. Não sejamos apenas mais um rinoceronte. Pensemos nossa realidade de forma crítica, para além de uma suposta guerra entre direita e esquerda. Não neguemos os avanços históricos da teoria marxista. Ela é a única ferramenta capaz de explicar nossa realidade, servindo de base na luta pela sua superação.

Fonte: Iela

Foto: Ilustração

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