“Os re­pre­sen­tantes e os re­pre­sen­tados,
en­frentam-se com hos­ti­li­dade e
não mais se com­pre­endem”
Karl Marx, O 18 de bru­mário de Luís Bo­na­parte.

 

Por Mauro Iasi

São dois os traços mar­cantes da con­jun­tura na qual nos en­con­tramos: há uma quebra de con­ti­nui­dade entre as classes e os seg­mentos de classe e suas re­pre­sen­ta­ções po­lí­ticas e ins­ti­tu­ci­o­nais; ao mesmo tempo, a crise econômica exige um novo pa­tamar de ex­plo­ração das classes tra­ba­lha­doras e isso se ex­pressa na ne­ces­si­dade de novas formas po­lí­ticas.

Tais as­pectos in­cidem não apenas nos seg­mentos do­mi­nantes, que dis­putam o butim re­sul­tante do afas­ta­mento da pre­si­dente eleita, mas, também, sobre a classe tra­ba­lha­dora. Aquilo que até então foi a forma po­lí­tica da so­cia­bi­li­dade bur­guesa torna-se es­treita para as con­tra­di­ções que ha­bitam seu con­teúdo. De forma geral, esse quadro se ex­pressa na su­pe­ração da “de­mo­cracia de co­op­tação” em di­reção a uma nova forma ins­ti­tu­ci­onal e po­lí­tica ainda não de­fi­nida ple­na­mente, que al­guns como Fe­lipe De­mier de­no­minam de “de­mo­cracia blin­dada” (ver: De­pois do golpe: a di­a­lé­tica da de­mo­cracia blin­dada no Brasil, Maude, 2017) e ou­tros pre­ferem chamar de “es­tado de ex­ceção”, se­guindo Gi­orgio Agamben (Es­tado de ex­ceção, Boi­tempo, 2016).

A base ma­te­rial da crise po­lí­tica en­contra-se na crise econô­mica, mas as me­di­a­ções entre as duas crises não são fá­ceis de serem es­ta­be­le­cidas. Os seg­mentos e fra­ções de classe da ordem se de­sen­tendem sobre a saída imediata e os ca­mi­nhos a se­guir, ainda que es­tejam de acordo com o es­sen­cial que se ma­ni­festa nas re­formas contra a classe tra­ba­lha­dora. Nesses mo­mentos, pode ocorrer uma dis­so­nância entre os re­pre­sen­tantes no par­la­mento e no go­verno, e as classes que eles efe­ti­va­mente re­pre­sentam.

Quando Marx tratou do tema em seu clás­sico O 18 de bru­mário de Luís Bo­na­parte, ele des­tacou cla­ra­mente que a uni­dade vi­a­bi­li­zada sob a re­pú­blica par­la­men­ta­rista, isto é, a forma po­lí­tica que tor­nava pos­sível que as fac­ções da bur­guesia fran­cesa vi­vessem lado a lado em “igual­dade de di­reitos”, era, da mesma ma­neira, “a única forma de Es­tado em que o in­te­resse geral da sua classe podia sub­meter a si, ao mesmo tempo, as de­mandas das suas fac­ções em par­ti­cular e todas as de­mais classes da so­ci­e­dade.” (p.114). A crise exige uma mu­dança de forma e co­loca o Par­la­mento contra a Cons­ti­tuição.

Não cabe aqui o in­tri­cado jogo que se es­ta­be­lece entre as classes e suas re­pre­sen­ta­ções, tão bri­lhan­te­mente des­crito por Marx. Mas nos in­te­ressa uma des­crição pre­cisa que re­sulta da in­de­cisão do par­tido da ordem em rasgar a cons­ti­tuição ou apoiar o pre­si­dente:

“Com a sua de­cisão sobre a re­visão, o Par­tido da Ordem de­mons­trou que não era apto nem para do­minar nem para servir, nem para viver nem para morrer, nem para su­portar a re­pú­blica nem para der­rubá-la, nem para manter a Cons­ti­tuição nem para jogá-la no lixo, nem para co­o­perar com o pre­si­dente nem para romper com ele. De quem ele es­pe­rava a re­so­lução de todas as con­tra­di­ções? Do ca­len­dário, do curso dos acon­te­ci­mentos.” (O 18 de Bru­mário de Luís Bo­na­parte, p. 120).

As in­de­ci­sões entre os re­pre­sen­tantes po­lí­ticos não ex­pressam nada menos do que as pró­prias con­tra­di­ções que emanam da crise, que por sua vez exigem mu­danças ao mesmo tempo em que pre­cisam que nada mude. No caso par­ti­cular da con­jun­tura na qual nos en­con­tramos, o par­tido da ordem tenta aprovar as re­formas que in­te­ressam ao ca­pital e torce para que elas pro­duzam efeito sem que seja ne­ces­sário al­terar a forma po­lí­tica no in­te­rior da qual os re­pre­sen­tantes operam e têm pro­ta­go­nismo. Quem operou o golpe que cul­minou no afas­ta­mento da pre­si­dente não pode en­tregar a es­ta­bi­li­dade que pro­meteu. Al­guns se­tores veem no afas­ta­mento de Temer a so­lução, mas ou­tros apostam na sua per­ma­nência como con­dição de es­ta­bi­li­dade. En­quanto isso, as fra­ções par­la­men­tares da bur­guesia cons­piram umas contra as ou­tras.

O bloco do­mi­nante se di­vide em fra­ções e estas por sua vez se sub­di­videm dentro e fora do par­la­mento, em nosso caso agra­vado por um choque entre as ins­tân­cias do pró­prio Es­tado (exe­cu­tivo, le­gis­la­tivo e ju­di­ciário). O ca­pital fi­nan­ceiro, aper­tando o tor­ni­quete dos gastos pú­blicos, pede o san­gra­mento do fundo pú­blico; os mo­no­pó­lios exigem a ma­nu­tenção das de­so­ne­ra­ções, sub­sí­dios, perdão às dí­vidas. Manter os juros e ao mesmo tempo baixá-los, com­pro­meter-se em não au­mentar im­postos e au­mentá-los, abrir mer­cados e tomar me­didas pro­te­ci­o­nistas, re­solver a crise de in­sol­vência dos Es­tados e mu­ni­cí­pios, sal­vando os ali­ados, apurar a cor­rupção doa a quem doer e com­prar os par­la­men­tares para salvar a pele do chefe da qua­drilha. Nesse ce­nário, é como cons­ta­tava Marx, também no 18 de bru­mário: “Os porta-vozes e os es­cribas da bur­guesia, os seus pa­lan­ques e a sua imprensa, em suma, os ideó­logos da bur­guesia e a pró­pria bur­guesia, os re­pre­sen­tantes e os re­pre­sen­tados, es­tra­nhavam-se e não se en­ten­diam mais.” (p. 120).

Caso nos de­ti­vés­semos nesse as­pecto, a con­jun­tura seria mar­cada por uma grande opor­tu­ni­dade para as classes tra­ba­lha­doras. No en­tanto, vi­vemos algo se­me­lhante no campo das classes tra­ba­lha­doras. A de­mo­cracia de cooptação se fun­da­men­tava num pacto de classes no qual a classe tra­ba­lha­dora foi se­ques­trada pela re­pre­sen­tação que fa­lava em seu nome, mas não re­pre­sen­tava seus in­te­resses. A crise da de­mo­cracia de co­op­tação re­sultou em uma crise de re­pre­sen­tação que per­mite que seg­mentos da classe tra­ba­lha­dora sejam cap­tu­rados pela ide­o­logia do­mi­nante ou se pul­ve­rizem numa nova se­ri­a­li­dade.

De certa forma, a ex­pressão po­lí­tica da de­mo­cracia de co­op­tação – a pe­quena bur­guesia po­lí­tica – também es­pera a so­lução de todas estas con­tra­di­ções “do ca­len­dário e da marcha dos acon­te­ci­mentos”. O ca­len­dário marca o ano de 2018 e a marcha dos acon­te­ci­mentos in­dica para as elei­ções pre­si­den­ciais.

O ca­len­dário e as elei­ções de 2018

Do lado da ordem, a bur­guesia e suas fra­ções es­peram que as re­formas e ajustes possam dar sus­ten­tação à re­to­mada econô­mica e os par­tidos da ordem se co­lo­quem em acordo sobre uma can­di­da­tura viável. Essa vi­a­bi­li­dade en­frenta um pro­blema prin­cipal: a can­di­da­tura de Lula, que apa­rece à frente em todas as pes­quisas. Exa­ta­mente por isso a ordem es­pera in­vi­a­bi­lizá-la ju­ri­di­ca­mente, mesmo que a custo de um con­tor­ci­o­nismo pro­ces­sual como a sen­tença do pa­la­dino de Cu­ri­tiba.

Do lado das an­tigas forças go­ver­nistas, toda a es­pe­rança se joga na re­to­mada da pre­si­dência pela eleição de Lula. E aqui está o pro­blema para a es­querda. Ao que pa­rece, o preço para essa re­to­mada seria a re­e­dição do pacto, fato in­di­cado cla­ra­mente por de­cla­ra­ções do pró­prio Lula, como na en­tre­vista ao Jornal Valor Econô­mico na qual o ex-pre­si­dente afirma que pode manter as re­formas apro­vadas no go­verno Temer em nome da es­ta­bi­li­dade. Também no pró­prio En­contro Na­ci­onal do PT o ex-pre­si­dente de­pois de dizer que vol­tará a go­vernar o Brasil pede que se eleja uma mai­oria par­la­mentar, porque caso con­trário serão ne­ces­sá­rias ali­anças.

É aqui que a ide­o­logia opera de forma de­ci­siva. A ide­o­logia, entre ou­tras coisas, é uma me­di­ação entre os su­jeitos e o real. Uma es­pécie de filtro de sig­ni­fi­cantes que solda uma série para dar sen­tido à exis­tência. Como no filme Ma­trix (1999) no qual os seres hu­manos estão presos às má­quinas como pi­lhas para serem su­gados, mas in­te­ragem com um pro­grama que mantém a apa­rência de nor­ma­li­dade. Nin­guém acor­daria de manhã e se es­for­çaria para chegar na hora para ser ex­plo­rado, ter sua força de tra­balho ex­pro­priada em nome da ex­tração de mais-valor. Fa­zemos isso para “tra­ba­lhar”, um meio ho­nesto de “ga­nhar a vida” e um ca­minho le­gí­timo de “as­censão social”.

Aqui a ide­o­logia fun­ciona como uma ra­ci­o­na­li­zação. O tur­bi­lhão dos acon­te­ci­mentos gera uma in­se­gu­rança e uma so­lução apa­rece como um bote em uma tem­pes­tade... O povo ele­gerá o novo pre­si­dente. Uma su­posta jornalista de uma rádio “que só toca no­tícia” dizia que apesar da crise o lado bom é que as ins­ti­tui­ções estão fun­ci­o­nando, a Cons­ti­tuição está sendo res­pei­tada e a de­mo­cracia não foi que­brada, di­fe­ren­te­mente do que ocorreu em 1964. Em sín­tese, a tem­pes­tade nos acossa vi­o­len­ta­mente, mas es­tamos a salvo em um bote cha­mado de­mo­cracia pi­lo­tado pelo pi­rata que afundou o navio no qual es­tá­vamos e que cha­mava… De­mo­cracia. Seria bom olhar o que está fora do foco que a ide­o­logia es­colhe como centro.

A bur­guesia não acre­dita na eleição como “so­be­rania po­pular”, tanto que se cerca de toda uma série de con­di­ções para que não se es­ta­be­leça uma ver­da­deira so­be­rania po­pular. Desde o fi­nan­ci­a­mento pri­vado de cam­panha, a es­tru­tura par­ti­dária, a le­gis­lação elei­toral até os ca­suísmos como a re­forma par­ti­dária e a farsa ju­di­ciária que pode levar à prisão de Lula.

No caso de Lula as coisas são um pouco mais com­plexas. Po­de­ríamos con­cordar que Lula reúne as con­di­ções de ga­nhar as elei­ções de 2018 e re­tomar a pre­si­dência e isso seria uma der­rota para os seg­mentos con­ser­va­dores que hoje de­fendem o go­verno Temer. Essa pos­si­bi­li­dade pre­cisa passar por um di­fícil teste, pois as elei­ções se darão em um ce­nário muito dis­tinto caso com­pa­remos com os úl­timos pleitos, tanto no que diz res­peito ao fato de o PT ter per­dido a po­sição de go­verno, da his­teria an­ti­pe­tista for­jada na so­ci­e­dade, das di­fi­cul­dades de fi­nan­ci­a­mento e das ali­anças ne­ces­sá­rias. No en­tanto, di­gamos apenas como hi­pó­tese para con­ti­nuar o ra­ci­o­cínio, que há uma den­si­dade elei­toral que pode con­tra­ba­lan­cear esses as­pectos con­trá­rios. 

Der­rotar as forças gol­pistas é o único que im­porta neste mo­mento? Ga­nhar para que e com que pro­grama? Com base em que ali­anças e com que com­pro­missos? Estas ques­tões ficam re­la­ti­vi­zadas e são tra­tadas como um despro­pó­sito di­ante de uma evi­dência: Lula é o único que pode elei­to­ral­mente fazer frente aos gol­pistas. Creio que o pro­blema está exa­ta­mente nesta “evi­dência”.

Es­tamos di­ante de um com­por­ta­mento re­ni­tente. Re­cor­demos. Lula e sua ten­dência per­deram a dis­puta no 8º En­contro Na­ci­onal do PT (1993) para a es­querda. Se dizia, à época, que Lula era evi­den­te­mente o can­di­dato à presi­dência, mas que a es­querda po­deria in­flu­en­ciar seus rumos tendo a mai­oria no par­tido. Não foi o que ocorreu. O grupo mi­no­ri­tário no En­contro criou ins­tân­cias fora do par­tido e di­rigiu o sen­tido mais geral da cam­panha e do pro­grama para de­pois re­tomar di­re­ta­mente a di­reção par­ti­dária sem des­montar as ins­tân­cias pa­ra­lelas cons­truídas em torno do então cha­mado “Ins­ti­tuto da Ci­da­dania”, hoje sig­ni­fi­ca­ti­va­mente re­ba­ti­zado de “Ins­ti­tuto Lula”.

Po­de­ríamos dar vá­rios exem­plos deste com­por­ta­mento no qual a von­tade co­le­tiva do par­tido cedeu à di­reção ca­ris­má­tica do seu líder. Pre­fe­rimos, no en­tanto, re­cuar um pouco na his­tória para a gê­nese desse pro­cesso.

As greves e a for­mação de Lula e do PT

Nas greves me­ta­lúr­gicas de 1978 e 1979 no ABC pau­lista, pendia sob os ope­rá­rios a cons­tante ameaça de in­ter­venção no sin­di­cato – o que de fato ocorre na greve de 1979 e de­pois em 1980. Na pre­pa­ração da greve de 1978, teve papel de­ci­sivo a or­ga­ni­zação de base na Scania e isso se ge­ne­ra­lizou na pre­pa­ração da greve de 1979 através de uma in­tensa agenda de reu­niões por fá­brica (Rainho e Bargas. Lutas Ope­rá­rias e Sin­di­cais dos me­ta­lúr­gicos de São Ber­nardo. V. 1. FG, 1983, p. 117). O risco de in­ter­venção era con­si­de­rado, assim como a ex­pe­ri­ência da greve de 1978 e a di­fi­cul­dade de se­guir a pa­ra­li­sação por mais tempo, le­vando a duas ini­ci­a­tivas fun­da­men­tais: a cons­ti­tuição de uma “co­missão de sa­lá­rios” e de um Fundo de Greve.

O que im­porta aqui é que tanto uma como outra ini­ci­a­tiva davam um ca­ráter co­le­tivo e en­rai­zavam a ação sin­dical no con­junto da ca­te­goria, en­fren­tando uma ex­ces­siva cen­tra­li­zação. No en­tanto, não havia perda de con­trole do sin­di­cato, como mostra a rei­vin­di­cação pelo “de­le­gado sin­dical” e não pela co­missão de fá­brica que se apre­sen­tava mais autô­noma. O ver­da­deiro con­trole da massa ope­rária que se le­van­tava era, sem dú­vida, a li­de­rança de Lula como prova a in­ter­venção de 22 de março de 1979 quando Lula é afas­tado da di­reção de di­reito, mas segue sendo a di­reção de fato. O mesmo ocor­reria na greve geral me­ta­lúr­gica de 1980, que além da in­ter­venção levou a mai­oria da di­re­toria do sin­di­cato e ou­tras pes­soas a serem presas pelo DOPS e en­qua­dradas na Lei de Se­gu­rança Na­ci­onal, entre eles Lula, que ficou preso de 19 de abril a 20 de maio de 1980.

Ocorre algo aqui muito in­te­res­sante. O pro­cesso que se de­sen­volve desde 1978 co­loca a classe em mo­vi­mento através de uma ins­tância de or­ga­ni­zação – o sin­di­cato –, que mede forças contra a di­ta­dura e a en­frenta através da greve. A di­ta­dura ataca com a in­ter­venção na­quilo que su­punha ser o centro que a man­tinha em pos­tura de­sa­fi­ante – o sin­di­cato –, mas a luta segue. A classe tem uma força em si mesma e em seu pro­cesso de luta, in­clu­sive cri­ando formas novas que atuam além dos li­mites sin­di­cais, como o Fundo de Greve, que não apenas re­co­lhia os ali­mentos para ul­tra­passar a di­fícil marca dos 30 dias com o corte dos sa­lá­rios, mas ia até os bairros, os lo­cais de mo­radia, ame­a­lhando so­li­da­ri­e­dade de am­plos se­tores da ci­dade e da so­ci­e­dade.

Neste ponto, a cons­ci­ência en­contra a ide­o­logia. A cons­ci­ência de classe que ali ger­mi­nava nos es­boços de uma cons­ci­ência em si não podia ver a si mesma como fonte de sua força, ainda se pro­jeta para algo fora dela, primeiro em uma ins­ti­tuição e de­pois em um líder. A re­sul­tante desta ob­je­ti­vação ex­ter­nada da cons­ci­ência é seu es­tra­nha­mento, de ma­neira que a força da classe apa­rece como a força do líder. O que se pedia nas as­sem­bleias re­a­li­zadas fora do sin­di­cato, que che­gavam a reunir de seis a oito mil ope­rá­rios, tanto em 1979 como em 1980, era a volta de Lula.

Em 1979, quando se es­ta­be­leceu a fa­mosa trégua de 45 dias du­rante a qual se ne­go­ci­aria a pauta dos me­ta­lúr­gicos acres­cida da re­to­mada do sin­di­cato, va­rias em­presas rom­peram o acordo de­mi­tindo tra­ba­lha­dores (foram demi­tidos 350 ope­rá­rios), des­con­tando os dias pa­rados ou em­pre­gando uma série de ou­tras me­didas de pressão (como na Volks, onde se sus­pendeu os ônibus das 2:20 da ma­dru­gada para forçar os tra­ba­lha­dores a fa­zerem hora extra até as 5:30). Em vá­rias fá­bricas estas ame­aças foram en­fren­tadas pelos ope­rá­rios que cru­zavam os braços e pa­ravam a pro­dução até re­verter a chan­tagem pa­tronal.

Não de­vemos des­con­si­derar o im­passe em uma greve, as di­fi­cul­dades em con­ti­nuar uma pa­ra­li­sação e a ne­ces­si­dade po­lí­tica de re­tomar o sin­di­cato, mas pres­temos atenção à es­tru­tura do ra­ci­o­cínio que jus­ti­fica a vo­tação do fim da greve, nas pa­la­vras do Lula em 1979: “gos­taria de pedir ao tra­ba­lhador, se quiser me dar um voto de con­fi­ança e à di­re­toria do sin­di­cato: é que apro­vassem esse acordo, que é pés­simo. Mas pre­ci­samos brigar pela volta da di­re­toria do sin­di­cato” (Rainho e Bargas, op. cit. p. 238).

A força que se­gurou a luta e a re­tomou em 1980 para mudar a cor­re­lação de forças do pro­cesso de aber­tura que se se­guiria foi a da classe tra­ba­lha­dora. Não se nega aqui o papel de suas li­de­ranças e das ins­ti­tui­ções em que se or­ga­ni­zava a re­sis­tência e a luta sin­dical, in­clu­sive a li­de­rança ca­ris­má­tica de seu maior líder, que foi Lula. No en­tanto, as li­de­ranças ex­pressam, em sua ação, a força de classe, e não a sua pró­pria. O que acon­te­ceria se uma li­de­rança pas­sasse a acre­ditar que essa força é dele e não da classe ex­pressa nele? Bom, a pri­meira con­sequência é que a classe se torna um meio para re­a­lizar o in­te­resse do líder e não este um meio para re­a­lizar o in­te­resse da classe.

A his­tória é um ar­senal de exem­plos. Stálin der­rotou os na­zistas. Não, quem der­rotou os na­zistas foi o povo russo, sol­dados des­te­midos, ge­ne­rais ex­tre­ma­mente ca­pazes e seu co­mando no Es­tado So­vié­tico. Lênin não fez a Revo­lução Russa, nem Trotsky. Por mais que ad­mi­remos essas duas li­de­ranças e sua ca­pa­ci­dade po­lí­tica, a força capaz de des­truir o tsa­rismo e dar os pri­meiros passos na di­reção de uma tran­sição so­ci­a­lista foi a da classe operária russa em ali­ança com os cam­po­neses. A van­guarda bol­che­vique, as ins­tân­cias so­vié­ticas e de­pois o Es­tado So­vié­tico são ex­pres­sões dessa força cons­ti­tuinte de toda mu­dança re­vo­lu­ci­o­nária. Quando uma classe, no pro­cesso de sua cons­ti­tuição en­quanto tal, se ob­je­tiva em ins­ti­tui­ções, se ex­terna em or­ga­ni­za­ções e pes­soas, ela corre sempre o risco de se ali­enar nessas ob­je­ti­va­ções, que dela se dis­tan­ciam e podem voltar-se contra ela, como uma força hostil que a con­trola.

De volta à con­jun­tura atual: como fi­camos?

Vol­temos à con­jun­tura. Temos três in­ten­ci­o­na­li­dades que dis­putam o sen­tido da “marcha dos acon­te­ci­mentos”. O bloco da bur­guesia e seus ali­ados; a pe­quena bur­guesia po­lí­tica de­sa­lo­jada do go­verno; os tra­ba­lha­dores.

O bloco bur­guês, como dis­semos, se uni­fica na ne­ces­si­dade das re­formas contra os tra­ba­lha­dores, mas se di­vide sobre quem deve go­vernar e sobre a di­mensão da re­forma po­lí­tica ne­ces­sária. A linha da dis­córdia pa­rece ser se a pro­fun­di­dade da re­forma po­lí­tica deve ou não eli­minar as atuais me­di­a­ções, isto é, os grandes par­tidos da ordem bur­guesa (PMDB, PSDB, DEM, PT etc.) e buscar novas formas.

A pe­quena bur­guesia quer voltar ao go­verno, e para isso opera es­sen­ci­al­mente em duas frentes: reu­ni­ficar sua base so­cial, o que lhe per­mi­tiria manter a força elei­toral, e re­cons­truir sua base de ali­anças, o que lhe ga­rantiu no pas­sado a go­ver­na­bi­li­dade sob o rei­nado da de­mo­cracia de co­op­tação. Aí está sua con­tra­dição, pois para ga­rantir a pri­meira ta­refa, pre­cisa se apre­sentar contra as re­formas, e para lo­grar a se­gunda, pre­cisa apre­sentar o compro­misso de mantê-las. O PT já fez isso antes, com Lula em 2002 e Dilma em 2014, mas ao que pa­rece o es­paço para isso está di­mi­nuindo. A so­lução está na li­de­rança ca­ris­má­tica. As massas não pre­cisam con­cordar com o que ele faz, mas acre­ditar nele e na pre­missa de que será “em seu nome”. É um con­vite, vejam, para votar em um “acordo pés­simo”, mas pre­ci­samos voltar ao go­verno. A força de toda ar­ma­dilha ide­o­ló­gica é fazer crer que um de­ter­mi­nado in­te­resse par­ti­cular é uni­versal.

O des­tino da classe tra­ba­lha­dora der­ro­tada e se­ri­a­li­zada é se fazer re­pre­sentar por uma destas duas al­ter­na­tivas: ou res­paldar a ordem bur­guesa, em parte pela ma­ni­pu­lação do com­bate à cor­rupção ou ao “pe­rigo do pe­tismo”; ou manter sua re­pre­sen­tação ali­e­nada na po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes da pe­quena bur­guesia. A única forma dos tra­ba­lha­dores su­pe­rarem o es­tágio que Marx apon­tava no seu 18 de bru­mário – isto é, “eles não são ca­pazes de re­pre­sentar a si mesmos, ne­ces­si­tando, por­tanto, ser re­pre­sen­tados.” (p. 143) – é en­trar em cena com força pró­pria.

É pre­ci­sa­mente nesse ponto que a questão do pro­grama se mostra es­sen­cial, pois per­mite ir além das apa­rên­cias e trazer à tona os in­te­resses de classe: a bur­guesia quer e pre­cisa das re­formas, além disso, aponta para a neces­si­dade de apri­morar o Es­tado Bur­guês su­pe­rando a atual forma “de­mo­crá­tica”; a pe­quena bur­guesia quer voltar ao go­verno, as re­formas são se­cun­dá­rias e a forma po­lí­tica do Es­tado Bur­guês é o li­mite de sua ou­sadia, quer re­cu­perar sua forma de­mo­crá­tica; os tra­ba­lha­dores são contra as re­formas e pre­cisam com­batê-las, sua von­tade po­lí­tica não pode se ex­pressar na atual forma do Es­tado Bur­guês.

O di­lema da es­querda é que ela ex­pressa a se­ri­a­li­dade da classe der­ro­tada e não a pos­si­bi­li­dade de sua nova fusão. Ela tem a obri­gação de apre­sentar pro­gra­ma­ti­ca­mente os in­te­resses de classe dos tra­ba­lha­dores, com indepen­dência e au­to­nomia em re­lação à bur­guesia e à pe­quena bur­guesia po­lí­tica, mas sua efi­cácia de­pende do mo­vi­mento real da classe. Caso man­tenha-se cap­tu­rada pela he­ge­monia da con­ci­li­ação de classes, a es­querda tende a se isolar. Al­guns fes­tejam isso de forma bi­zarra en­quanto cavam um pouco mais fundo a cova em que se en­terram.

A so­lução da pe­quena bur­guesia im­plica no sa­cri­fício dos in­te­resses dos tra­ba­lha­dores, mas pode ser o ca­minho para a so­lução dos pro­blemas do bloco bur­guês. Este só pode se impor, por si mesmo, pela der­rota das pretensões da pe­quena bur­guesia e dos tra­ba­lha­dores, mas tem força para isso, pois tem o Es­tado Bur­guês ao seu dispor. O bloco pe­queno bur­guês não pode se impor por si mesmo, sem a ali­ança de classes com o bloco dominante e sem o apoio pas­sivo do bloco po­pular. 

Afinal, não tem força pró­pria e autô­noma, pois ab­dicou de uma go­ver­na­bi­li­dade po­pular. Os tra­ba­lha­dores, en­quanto se­ques­trados pela he­ge­monia da pe­quena bur­guesia po­lí­tica, tam­pouco ex­pressam força pró­pria. De­pendem apenas de suas pró­prias forças, é ver­dade, mas acre­ditam ainda que de­pendem de tudo, menos de si mesmos. Só po­de­riam se apre­sentar como força pró­pria em um ter­reno de luta di­verso do ce­nário elei­toral, pois exige uma fusão de classe que su­pe­rasse sua se­ri­a­li­dade atual, indo além das an­tigas formas e ges­tando ou­tras abertas ao fu­turo e não como ecos pá­lidos do pas­sado. Isso só se gesta na luta, ine­vi­ta­vel­mente no in­te­rior de ordem instituída, mas além dos li­mites ins­ti­tuídos como vimos em 1979 e 1980.

Para os pri­meiros tra­tava-se de pri­meiro der­rotar a Dilma, e de­pois... Já para os se­gundos, trata-se de pri­meiro der­rotar o Temer, de­pois... Para os tra­ba­lha­dores o de­pois é a des­truição dos li­mi­tados di­reitos tra­ba­lhistas, a reforma da pre­vi­dência e o saque do fundo pú­blico. O de­pois é Ra­fael Braga e todos nossos ir­mãos apo­dre­cendo na prisão en­quanto ad­vo­gados e juízes com­pe­tentes li­bertam um por um a ca­nalha go­ver­nante.

Por isso a bur­guesia e a pe­quena bur­guesia po­lí­tica es­peram a sal­vação orando ao ca­len­dário e a marcha dos acon­te­ci­mentos, en­quanto os tra­ba­lha­dores querem rasgá-lo cri­ando novos fatos que sejam ca­pazes de li­bertar o tempo.

Mauro Iasi é membro do PCB e pro­fessor de Ser­viço So­cial da UFRJ.

Fonte: Correio da Cidadania