Por Rivera Vieira, advogado do SLPG Advogados Associados

 

O governo federal, por meio da Secretaria de Previdência Social, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, toma medida que pressupõe a existência de fraudes ou má-fé dos segurados e pode determinar o cancelamento automático de benefícios caso os segurados não se apresentem para reavaliação pericial e comprovação de que se mantêm incapazes para o trabalho. O anuncio é claro:

 

Caso a perícia não seja agendada, o pagamento ficará suspenso até o convocado regularizar sua situação. A partir da suspensão, o beneficiário tem até 60 dias para marcar o exame. Se não procurar o INSS neste prazo, o benefício será cessado. (fonte http://www.previdencia.gov.br/2018/04/servico-governo-convoca-152-mil-segurados-para-revisao-de-beneficios-do-inss/) 

 

Foi anunciada a revisão de 33.875 benefícios de auxílio-doença e 118.394 benefícios de aposentadorias por invalidez, totalizando 152.269 segurados que, supostamente, teriam sido convocados para que fossem revisados os benefícios mediante a reavaliação por perícia médica para verificação da persistência do estado de incapacidade laboral a justificar a manutenção da prestação dos benefícios.

 

A administração pública realmente tem o dever de revisar seus atos e fiscalizar a prestação de benefícios. No entanto, em consideração à natureza da prestação que é destinada à garantia da sobrevivência do segurado que já comprovou administrativamente ou judicialmente não ter condições de sobreviver com o fruto do trabalho, não é aceitável o procedimento sumário com predeterminação de cancelamento do benefício caso o segurado não se apresente para a revisão.

 

As Leis 8213/1991 e 8.212/1991 assim estabelecem:

 

Art. 101. O segurado em gozo de auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e o pensionista inválido estão obrigados, sob pena de suspensão do benefício, a submeter-se a exame médico a cargo da Previdência Social, processo de reabilitação profissional por ela prescrito e custeado, e tratamento dispensado gratuitamente, exceto o cirúrgico e a transfusão de sangue, que são facultativos.

 

Art. 71. O Instituto Nacional do Seguro Social - INSS deverá rever os benefícios, inclusive os concedidos por acidente do trabalho, ainda que concedidos judicialmente, para avaliar a persistência, atenuação ou agravamento da incapacidade para o trabalho alegada como causa para a sua concessão. 

 

A media é anunciada como cumprimento da obrigação institucional, questão de política pública motivada pela necessidade de redução de gastos. No entanto presume de que o povo trabalhador emprega meios espúrios para receber benefício previdenciário sem necessidade.

 

Não pode o poder público, sobre o pretexto de economia de recursos, presumir que o cidadão que já comprovou ser portador de condição que lhe retirou a capacidade para o trabalho, esteja plenamente recuperado e ter condições de sobreviver sem o recebimento do benefício previdenciário.

 

O INSS tem meios para identificar se o trabalhador recebe outra renda formal e, nesse caso, cancelar o benefício. No entanto, nos casos em que o segurado não se apresentar para agendar a avalição pericial, deve ser mantida a prestação do benefício pelo menos até que se realize a perícia médica após a intimação pessoal do segurado para se apresentar ao INSS sob pena de expor o segurado à privação absoluta de renda sem o devido aviso para que demonstre ainda necessitar da prestação para sobreviver.

 

Os meios de tecnologia e o aparato estatal permitem ao INSS empregar meios efetivos para notificar o cidadão. O edital publicado no Diário Oficial da União (DOU) não atende o dever de efetiva comunicação e garantia do devido processo legal. No mesmo sentido, o anúncio no site da Secretaria de Previdência e as notícias nos veículos de comunicação não permitem que seja certificada a efetiva ciência do segurado.

 

Ao cidadão segurado deve ser garantido o direito de provar que continua incapacitado e não ter o benefício cancelado sem a produção de provas da persistência da incapacidade.

 

A Construção Federal (artigo 5º, incisos LVI e LV) e a Lei 9.784/1999 garantem ao segurado o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa durante o trâmite de processo administrativo com a finalidade de suspender ou cancelar o benefício previdenciário.

 

A Constituição não deixa dúvidas:

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

 

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes 

 

 

Já a Lei 9.784/1999, no seu artigo 26, literalmente, estabelece quais meios devem ser empregados para notificação do segurado e estabelece o rigor quanto à certeza da ciência do interessado:

 

 

Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.

 

(...)

 

3º A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. 

 

 

Pode-se até aceitar o emprego outros meios mais eficazes, modernos e econômicos para notificação dos segurados do que aqueles listados na norma, mas, de modo algum, pode ser aceito o emprego de meio que não traga a certeza de que o segurado que está sujeito ao cancelamento da renda mensal que lhe garante a sobrevivência foi realmente notificado para se reapresentar ao INSS para nova avaliação pericial.

 

A questão já foi objeto de avalição judicial pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que confirma que o cancelamento administrativo de benefício por incapacidade, dada a natureza de garantia da sobrevivência do segurado, não pode ser cancelado sem a realização da pericia médica, ou seja, sem que seja assegurado ao cidadão a prova de que se mantém presentes as condições que determinaram a concessão do benefício.

 

EMENTA: PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. AUXÍLIO-DOENÇA. REAVALIAÇÃO MÉDICA. NÃO REALIZAÇÃO POR DIFICULDADE NO AGENDAMENTO DA PERÍCIA. RESPONSABILIDADE DA AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA. RESTABELECIMENTO DO BENEFÍCIO. Descabido o cancelamento de benefício previdenciário em razão da não realização de perícia médica com a finalidade de reavaliar as condições que ensejaram a concessão do benefício, quando a não realização da perícia ocorre por responsabilidade do próprio INSS. (TRF4 5029915-07.2017.4.04.7100, SEXTA TURMA, Relator ARTUR CÉSAR DE SOUZA, juntado aos autos em 12/04/2018) 

 

É preciso reiterar que os segurados em questão já foram submetidos a perícias administrativas ou judiciais, já comprovaram ser credores da prestação previdenciária, portanto é de presumir-se que se mantêm as condições que geraram os benefícios e não o contrário, o que leva à obrigação de manutenção dos benefícios até a realização de nova perícia.

 

Por todo exposto, certamente estamos diante de uma questão capaz de interferir nas condições de vida de um grande número de cidadãos, segurados e familiares que atualmente dependem da prestação do auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez que pode ser compulsoriamente cancelado.

 

Estamos diante de evidente violação de direitos fundamentais do cidadão, privação do acesso à prestação previdenciária (direito fundamental assegurado nos artigos 6º da Constituição, especificamente regulado no artigo 201, porque falamos de segurado do INSS) e ao direito ao devido processo legal e ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, incisos LIV e LV).

 

Como anunciado no site da Secretaria de Previdência Social, são 152.269 no país todo e 10.578 em Santa Catarina. Aos segurados que tiverem acesso à informação resta a preparação para a comprovação da manutenção do estado de incapacidade e àqueles que forem surpreendidos com o cancelamento arbitrário dos benefícios, restará a via judicial para impor a manutenção da prestação até que seja assegurada a prova de que persistem as condições que autorizam o recebimento do benefício, a incapacidade para auferir renda suficiente à garantia de sua existência digna com o próprio trabalho.

 

 

Fonte: SLPG Advogados Associados