Por Wesley Lima

O Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca) ao divulgar o dossiê “Estimativa 2018 de Incidência de Câncer no Brasil” afirma que o país deve registrar, entre 2018 e 2019, cerca de 600 mil novos casos de câncer por ano.

Nesse mesmo cenário, inúmeros estudos científicos nacionais e internacionais apontam que a intoxicação alimentar, provocada pela ingestão de resíduos de agrotóxicos, está diretamente relacionada ao aumento da incidência de doenças, entre elas, se destaca o câncer.

Nesta última quarta-feira (27), diversas iniciativas de Norte a Sul do país alertaram sobre o aumento significativo de casos de câncer no Brasil. Iniciativas que fazem parte do Dia Nacional do Combate ao Câncer, criado por meio da Portaria do Ministério da Saúde GM nº 707, de dezembro de 1988.

Segundo a Portaria, a data tem como objetivo ampliar o conhecimento da população brasileira sobre o câncer, principalmente sobre a sua prevenção.

Junto ao tema do combate e prevenção do câncer, em entrevista para Página do MST, Carla Bueno (34), agrônoma e militante do MST, ao lado da Ludmila Bandeira (36), socióloga e da direção estadual pelo setor de saúde do MST em Minas Gerais, falam sobre o uso e ingestão de agrotóxicos e anunciam a produção e o consumo de alimentos saudáveis, a partir da agroecologia, em contraposição ao modelo de produção do agronegócio.

Confira a entrevista.

Da esquerda para a direita: Ludmila Bandeira, socióloga e da direção estadual pelo setor de saúde do MST em Minas Gerais, e Carla Bueno, agrônoma e militante do MST. Foto: MST

Página do MST: Se de um lado nós temos a produção de alimentos saudáveis, cujo os protagonistas são os agricultores e agricultoras familiares, do outro lado, nós temos o agronegócio. Explique, brevemente, como o agronegócio se articula hoje em torno da produção de alimentos.

Carla Bueno (CB): São distintos setores, que compõe isso que a gente chama de agronegócio e esses setores possuem diferentes interesses econômicos, produtivos, e se comportam na luta de classes também de maneira diferenciada. O agronegócio não é homogêneo, existe um setor que é mais atrasado, aquele ainda associado as raízes da colonização, baseado nos princípios do plantation com monocultura, latifúndio, muitas vezes com a mão de obra próxima do que era a mão de obra escrava. Essa é a base mais ampla do agronegócio no Brasil.

Tais territórios, normalmente, guardam contornos mais fortes de conflitos. Um dos fatores de conflito é o próprio modelo que gera contaminação a partir do uso excessivo de insumos para driblar a natureza que não consegue viver em equilíbrio sem biodiversidade (monocultura em grandes escalas) e passam a depender dos venenos. Os agrotóxicos são a principal contradição técnica desse modelo e tem gerado graves problemas de saúde pública.

Existem outros setores do agronegócio que já perceberam que esse modelo é atrasado e estão em busca de tentar reduzir as contradições. Sem mexer no tamanho da propriedade (questão central e cláusula pétrea do capitalismo no campo), eles tem consorciado espécies e apresentado saídas ao modelo que era dependente do veneno, tudo no marco do agronegócio, mas com mais biodiversidade e e menos contradição pra sociedade, o próprio agronegócio tem provado a viabilidade da agricultura sem veneno.

Tal se apresenta em extratos distintos e precisamos com o tempo ir analisando os diferentes interesses desses setores e como eles se comportam na política. Alianças táticas são necessárias para o diálogo sobre o projeto de nação e modelos de desenvolvimento alcançáveis para o país. O mercado internacional irá impor a sua agenda de importações mais “sustentáveis” e isso faz o diálogo entre eles dificultar, já que passa a existir contradição entre eles, abrindo um flanco importante para o debate de desenvolvimento e modelo de produção no país e no mundo.

Alguns temas (manejo produtivo, organização das famílias, estudo, formação e etc.) são centrais para produção de alimentos saudáveis. Explique quais são os principais desafios que se articulam em torno da produção de alimentos saudáveis no Brasil hoje?

CB: No que tange os desafios produtivos, a gente está enfrentando no Brasil inteiro a necessidade de uma transição no modelo de produção. Transformar pela raíz o modelo hegemônico que é do agronegócio, baseado no veneno, retirar esse veneno num processo que chamamos de transição agroecológica para resgatar a biodiversidade que perdemos ao longo do desenvolvimento do agronegócio nos últimos 50 anos capazes de destruir biomas de milênios.

Misturar a biodiversidade nativa da região e com isso produzir alimentos (animais e vegetais) dentro e fora dos fragmentos florestais, circuitos curtos de comercialização e consumo, a produção e a reprodução da vida no campo são temas fortemente presentes nos territórios há mais de 30 anos através da Agroecologia que tem virado assunto público, já que hoje as pessoas querem conhecer a procedência dos alimentos que consomem e o ato de alimentar-se tem conscientizado e politizado muita gente, mas precisa virar também uma discussão pública para impor uma agenda de discussão ao Governo Federal que hoje está abandonando as políticas públicas e estimulando conflitos no campo, na exata contramão das necessidades da nação.

A Agroecologia é uma prática ancestral, sempre presente nas comunidades tradicionais e absorvida pela agricultura familiar que hoje enxerga como um modelo produtivo economicamente viável, que possibilita a produção de alimentos saudáveis, principal demanda dos espaços urbanos num momento de ameaça do retorno do Brasil ao mapa da fome.

Portanto, essa conexão entre campo e cidade é fundamental, para que os desafios produtivos possam deslanchar no campo. Reconhecer o papel da agricultura é fazer com que o Estado brasileiro exerça seu papel de responsabilizar-se pela produção e abastecimento universal de alimentos. A eliminação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar é um indicador de como o governo vem caminhando no sentido contrário disso, pois era um espaço onde a sociedade civil estava articulada para dar respostas aos diversos desafios destacados aqui.

No Dia do Combate ao Câncer, por que é importante apontarmos os agrotóxicos como os principais causadores dessa e de outras doenças?

CB: O câncer, assim como outras doenças dessa nova sociedade moderna, da intensidade máxima do trabalho, onde o trabalhador precisa render ao máximo para dar conta de alcançar o lucro que as empresas “necessitam”, que o grande capital “necessita”. Então é num momento de grande crise, como essa do capitalismo que algumas doenças que não estavam tão espalhadas na sociedade passaram a se espalhar. Algumas são psíquicas, físicas, mas também orgânicas como a obesidade a ma-nutrição convivendo lado a lado. O câncer também é uma delas e que não escolhe classe social, ataca a todos e se tornou praticamente uma epidemia no Brasil nos últimos anos e isso está associado a forma como a gente vive. Não é um fator exclusivo que gera o câncer, mas são múltiplos fatores, combinados entre si que podem gerar o câncer. Não há dúvidas que a forma de alimentar-se é um fator determinante.

Há nos alimentos diversos resíduos de agrotóxico individualmente, segundo dados da ANVISA [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], mas a combinação desses diversos agrotóxicos nem ao menos se estima o que pode gerar diretamente ao nosso corpo. Um agrotóxico nunca é utilizado isoladamente numa cultura, existem cultural que exigem mais de um princípio ativo e inúmeras aplicações deste produto. Esses resíduos todos, misturados e acumulados ao longo da vida, pode sim gerar uma contaminação crônica que vai ser desenvolvida ao longo da exposição, diferente do caso do agricultor que fica exposto a uma contaminação aguda com a possibilidade do contato direto com o produto.

Hoje, o câncer ataca jovens, adultos, idosos e até crianças. O estudo do professor Wanderlei Pignatti na Universidade Federal do Mato Grosso provou a existencia de resíduos de agrotóxicos até mesmo no leite materno. No Movimento Sem Terra quando a gente discute alimentação e a nossa proposta de modelo de produção, esses debates vem no sentido de combater essas doenças a longo prazo, diminuindo as taxas na população brasileira, esse é o nosso farol. Alimentar com saúde a nação e cuidar da natureza.

Página do MST: A produção e o consumo de alimentos saudáveis são fundamentais para o combate e a prevenção de diversas doenças, entre elas, o câncer. Ludmila, nos ajude a entender o que é uma alimentação saudável e as diversas dimensões que esse conceito se aplica.

Ludmila Bandeira (LB): A alimentação saudável, de fato, tem diversas dimensões, desde a produção até o consumo. Essas dimensões se aplica, principalmente, quando pensamos a garantia da alimentação saudável como um direito, ou seja, a garantia do alimento a todos os povos e a sua produção. Nesse último, vale destacar, que estamos falando de uma produção sem veneno, livre de transgênicos, livre de agrotóxicos, bem como, na perspectiva da soberania dessa produção, a partir da soberania das sementes, que é pensada a partir do controle, do acesso e da manutenção. Porque essa semente sagrada, semente crioula, mantida pelos povos tradicionais, pelos camponeses é que garantem que é possível produzir alimentos saudáveis e livres de tudo isso que já citei.

Mais uma dimensão da alimentação saudável é a agroecologia. Se a gente fala dessa produção, a gente fala que essa produção precisa ser de forma diferente que o agronegócio coloca para nós. Então é a produção da diversidade de alimentos e produzidos com novos valores. Sem a exploração do homem pelo homem, sem a opressão das mulheres pelos homens e, de fato, produzida a partir da luta. A luta pela terra também é uma dimensão desse alimento que é saudável, produzido a partir da luta que é pela Reforma Agrária.

Junto com isso, precisamos destacar também a valorização de uma dieta alimentar produzida pela Reforma Agrária, mas que a gente pensa e entenda essa produção para quem a gente quer produzir, como a gente quer produzir e como produzir. São três eixos para pensarmos essa alimentação saudável. Para quem? Para nosso consumo, preparado para o consumo coletivo com essa produção diversa e natural, sem o uso de agrotóxico, de veneno, sem exploração. Acho que esses são alguns caminhos que nos ajudam a pensar esse alimento.

É possível pensar a produção de alimentos saudáveis desassociados do debate da saúde? Por quê?

LB: Não é possível pensar a produção de alimentos sem pensar o debate da saúde ou onde eles se relacionam. Uma porque os agrotóxicos promovem o adoecimento e a extinção das especies animais, vegetais e também dos seres humanos.

E com os seres humano a gente pode perceber esse adoecimento, a partir da intoxicação que ocorre pela inalação, pela ingestão e pelo próprio contato com os agrotóxicos. Essa intoxicação acontece com quem trabalha com os agrotóxicos diariamente, que são os trabalhadores nas lavouras, os próprios consumidores dos alimentos produzidos com agrotóxicos, que vai gerando resíduo através da alimentação, ou ainda, na contaminação dos povos e da população que mora perto das áreas onde tem a produção com o uso de agrotóxicos. Isso ocasiona também a intoxicação pela exposição dos pesticidas nas lavouras, nos alimentos, que vai contaminando a água, o lençol freático, as plantações, o solo.

A intoxicação causada pelo consumo dos resíduos de agrotóxicos nos alimentos é um problema de saúde pública, porque pode ter problemas gravíssimos e irreversíveis a saúde humana, como por exemplo o câncer.

Nós já temos alguns estudos que apontam que existe uma relação entre a exposição com agrotóxicos e o surgimento de câncer entre crianças e adultos. Desde as mães que estão expostas aos agrotóxicos na gravidez e no período de amamentação, aos trabalhadores que trabalham expostos nas lavouras utilizando veneno e os consumidores que através da ingestão de alimentos que foram produzidos com agrotóxicos vai gerando resíduos desse produto no corpo […] e criando o câncer.

Por último, gostaria de trazer alguns dados desse vínculo dos resíduos de agrotóxicos correlacionado com o câncer. Esse estudo apresenta alguns produtos que compõe os agrotóxicos, por exemplo, os organofosforado, que indica que os resíduos no corpo favorece o surgimento dos linfomas, do câncer na próstata e leucemia. Os piretróides, que são outras substâncias, que causam os tumores cerebrais. Os carbamatos e os 24D produzem danos genéticos e difusões das células.

Com esses dados a gente consegue perceber que, tanto o uso, quanto o consumo de agrotóxicos na alimentação estão diretamente ligados a intoxicação.

Um dado que é importante chamar atenção é que essas intoxicações a gente tem uma dificuldade da notificação delas no SUS [Sistema Único de Saúde] durante o tratamento. Ou seja, o paciente chega no SUS reclamando de uma intoxicação alimentar e essa reclamação é sub notificada no SUS, ela não aparece, não está diretamente relacionada com a intoxicação pelo agrotóxico com a doença. Isso também é um problema para que possamos fazer esse link entre o uso do agrotóxico, seja ele no trabalho ou no consumo do alimento, diretamente relacionada com a intoxicação que o sujeito sofre. Isso também é uma coisa a ser considerada.

**Este é o segundo texto de uma série de especiais sobre o Dia Mundial de Luta Contra os Agrotóxicos. Leia o primeiro texto da série aqui e acompanhe na Página do MST para as próximas reportagens.

**Editado por Fernanda Alcântara

Fonte: Página do MST

Foto do Destaque: Pixabay

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